

Órgão recomenda a prefeito que acabe com triagem de passageiros em situação de vulnerabilidade na rodoviária da cidade, por violar direitos fundamentais. Topázio Neto anunciou “devolução” de quem chegar sem trabalho e residência
Por Vinicius Doria - Correio Braziliense
A Defensoria Pública da União (DPU) recomendou, nesta sexta-feira, ao prefeito de Florianópolis, Topázio Neto (PSD), que suspenda a triagem de passageiros em situação de vulnerabilidade na rodoviária da cidade, por violar direitos fundamentais e promover “um controle migratório ilegal dentro do território nacional”.
Segundo o órgão, a Constituição “garante a qualquer pessoa — brasileira ou migrante — o direito de circular no território nacional, e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, também garantem a liberdade de circulação”.
Ao anunciar, no início do mês, o “sucesso” de uma política pública de recepção de migrantes em Florianópolis, o prefeito levantou um debate ético e político sobre a prática de “exportação” de vulneráveis — principalmente, pessoas em situação de rua — para cidades com mais estrutura de acolhimento.
Nesta semana, a Câmara Municipal de Belo Horizonte jogou mais combustível na polêmica ao aprovar, em primeiro turno, o projeto de lei que cria o programa “De volta para minha terra”, que permite à prefeitura arcar com os custos de devolução de migrantes que chegam à capital mineira sem dinheiro, trabalho ou local para ficar. Esse tema também fez parte da agenda dos candidatos a prefeito de Belo Horizonte, na campanha eleitoral do ano passado (leia abaixo).
Em um vídeo postado nas redes sociais, na semana passada, o prefeito de Florianópolis disse que, “se uma pessoa chega aqui, sem saber onde vai dormir, sem qualquer plano de vida, é óbvio que foi despachada de algum lugar”. Informou, ainda, que mais de 500 migrantes, a maioria em situação de vulnerabilidade, já foram “devolvidos” para as cidades de onde vieram.
“Algumas pessoas que desconhecem a realidade da cidade falam que vamos fazer controle migratório. O que a gente não quer é ser depósito de pessoas em situação de rua. Se uma cidade mandar para cá, nós vamos impedir, sim”, avisou o prefeito, na postagem.
A DPU deu prazo de 10 dias para que o prefeito informe a situação dessas “500 pessoas”, o quanto foi gasto para mandá-las de volta e de onde saiu o dinheiro.
A polêmica começou depois que a Prefeitura de Florianópolis instalou, na rodoviária da cidade, um posto da Secretaria de Assistência Social para identificar, entrevistar e, se preciso, pagar a passagem de volta do migrante.
“Quando identificamos que essas pessoas chegam sem ter um contato de trabalho ou família, sem saber o que fazer, e identificamos que foram enviadas à cidade por outros municípios, buscamos entender os motivos e enviamos de volta para a cidade de origem. É importante explicar que a assistência social sempre entra em contato com a cidade de origem e/ou familiares para dar o encaminhamento correto”, informou a prefeitura, por meio de nota. Sustentou, contudo, que não tem um levantamento da origem dessas pessoas.
Ao Correio, Topázio Neto lamentou ver esse debate reduzido à questão da “devolução” dos moradores de rua às suas cidades de origem. Para ele, o problema é muito mais complexo, e a Prefeitura de Florianópolis atua de forma integrada para dar atenção a essas pessoas. Prestar assistência social para pessoas em situação de rua, segundo o gestor, é uma ação cara, que depende de abordagem multidisciplinar (no quadro ao lado, ele elenca algumas das medidas que a prefeitura adota). O que mais o preocupa é que outras cidades optem “pelo caminho mais fácil”. “Qual é a única política pública que um prefeito que não tem capacidade de investimento pode fazer? É empurrar o problema para a cidade do lado. E eu não culpo os prefeitos”, disse.
Topázio Neto assegurou que a capital catarinense não faz “controle de entrada” de migrantes na rodoviária. “Fui mal-interpretado”, afirmou. Ele lamentou que esse debate tenha se limitado a uma questão político-eleitoral para alimentar a polarização ideológica. “Para essas pessoas que querem morar nas ruas, a única coisa que podemos argumentar com elas é que, do mesmo jeito que elas têm o direito de ir e vir, quem não mora na rua também tem. Então, essas pessoas têm que se comportar com urbanidade, com educação. Façam o que quiserem, mas sem atingir o direito dos outros.”
Na avaliação do prefeito, a sociedade precisa discutir esse problema. “Nós não podemos fazer de conta que isso está normalizado. Se não houver uma conscientização de todos, se não houver um trabalho integrado entre governo federal, governos estaduais e prefeituras, esse problema só vai se agravar no país. Essa discussão não pode ser ideológica, rasa, do jeito que estamos vendo”, acrescentou.
Estigmatização
O vídeo gravado pelo prefeito viralizou nas redes sociais e chamou a atenção da Defensoria Pública de Santa Catarina, que, por meio do Núcleo de Cidadania, Direitos Humanos e Ações Coletivas (Nucidh), abriu um procedimento para investigar em que condições esses migrantes viajaram para Florianópolis, como foram recepcionados e por que foram despachados de volta com passagens pagas pelo poder público. A Defensoria quer saber se as medidas “impedem o ingresso de pessoas em situação de vulnerabilidade em Florianópolis e determinam seu retorno às cidades de origem”.
“O vídeo divulgado pela prefeitura traz um discurso de estigmatização e exclusão, ao dar a entender que pessoas pobres não podem permanecer na cidade. Além de ferir a dignidade humana, isso pode representar uma violação ao direito fundamental de ir, vir e permanecer, garantido pela Constituição”, declarou a coordenadora do Nucidh, defensora pública Ana Paula Fão Fischer, ao site oficial da instituição.
“A Constituição Federal não autoriza a utilização de qualquer controle de fronteira entre municípios e que ninguém pode ser impedido de circular pelo território nacional por não ter emprego ou moradia. A remoção ou o transporte compulsório de pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade social é vedado por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e por legislações municipais que regulamentam o benefício eventual de passagem — que só pode ser concedido quando há vontade expressa da pessoa em retornar e comprovação de vínculo familiar ou comunitário na cidade de destino”, informou a Defensoria Pública, em nota.
O vídeo também não passou despercebido pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), que abriu investigação para apurar as denúncias de violação de direitos fundamentais. “O vídeo chegou ao conhecimento do MPSC e será encaminhado às Promotorias de Justiça com atribuição na área da cidadania para ciência e adoção das providências que entenderem cabíveis.”
Topázio Neto disse que apoia a presença do MP no enfrentamento do problema e assegura que a prefeitura atua em parceria com a instituição. “Eu faço a denúncia ao Ministério Público. O MPSC já tem outras ações civis públicas contra municípios do Brasil que mandaram pessoas para Florianópolis sem nenhum tipo de aviso e com uso de dinheiro público”, afirmou.
Três perguntas para// Topázio Neto, prefeito de Florianópolis
Como o senhor avalia a repercussão do seu vídeo, que alimentou debates de ordem ideológica e político-eleitorais?
O que eu vi é que poucos assistiram ao meu vídeo até o final, só os primeiros 10 segundos, em que eu digo que temos uma área de assistência social que faz o controle das pessoas que chegam à rodoviária. Isso é um fenômeno típico das mídias sociais, todo mundo caçando likes. Mas, nos comentários, a grande maioria de quem acompanhou o assunto e viu o vídeo até o final me deu razão.
Não passou da hora de os prefeitos se unirem para discutir esse problema de forma conjunta? Nem o Censo consegue identificar essas pessoas, alimentando um jogo de empurra?
A única política pública de um prefeito que não tem capacidade de investimento é empurrar (as pessoas em situação de rua) para a cidade do lado. E eu não culpo os prefeitos. Não adianta vir com discurso fácil de que a pessoa tem o direito de morar onde quiser, de morar na rua. E o direito das outras pessoas, não têm direito ao espaço público também? Essa discussão tem que ser séria, não pode ser ideológica, uma discussão rasa. É uma questão humanitária, de saúde pública, de preocupação com o ser humano.
O senhor defende a criação de um cadastro estadual ou nacional dessas pessoas que vivem em condição de vulnerabilidade nas ruas?
Em parceria com o governo do estado, queremos implantar um cadastro técnico dessas pessoas em Santa Catarina. O aplicativo que usamos em Florianópolis estamos levando para todos os 295 municípios do estado. Isso é importante porque o morador de rua que está comigo, hoje, amanhã pode estar em Joinville ou em Balneário Camboriú. Sem o cadastro único, cada vez que essa pessoa é abordada na rua, é sempre a primeira vez, o atendimento recomeça sempre do zero.
Não é de hoje que prefeitos se queixam do envio de moradores em situação de rua — incluindo dependentes químicos e pessoas com doenças mentais — por parte de outras prefeituras. Esse jogo de empurra com seres humanos tem sido noticiado pela imprensa há muitos anos, em cidades de todo o país.
Em abril, por exemplo, o prefeito de Linhares (ES), Lucas Scaramussa (Podemos), acusou a prefeitura de Cabo Frio (RJ) de enviar ao município 12 pessoas em situação de rua com oferta falsa de trabalho nas fazendas de café da região. Seis voltaram para Cabo Frio com passagens pagas pela prefeitura fluminense, em uma operação acompanhada de perto pelos Ministérios Públicos do Espírito Santo (MPES) e do Rio de Janeiro (MPRJ).
Segundo a Prefeitura de Cabo Frio, os moradores de rua, “após utilizarem os serviços da Casa de Passagem, teriam manifestado espontaneamente o desejo de retornar ao estado de origem para tentar novas oportunidades, especialmente na colheita do café”. A administração municipal nega que tenha havido “qualquer promessa de emprego ou contato com empresas”.
De acordo com dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua — ligado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) —, em dezembro de 2024, as cidades brasileiras somavam 328 mil pessoas vivendo nas ruas. São Paulo (139,7 mil), Rio de Janeiro (30,8 mil) e Minas Gerais (30,2 mil) lideram o ranking. Santa Catarina ocupa a 8ª posição, com quase 11,7 mil pessoas nessa condição. Um dado que chama a atenção é que quase 70% dessas pessoas são negras, e 14% têm algum tipo de deficiência. O observatório é uma das poucas fontes de informação disponíveis para mapear essas pessoas.
O senador Carlos Viana (Podemos-MG) denunciou o mesmo problema em Belo Horizonte, cidade em que se lançou candidato a prefeito nas eleições de 2024. Na época, defendeu a política de “devolução” dos migrantes. “Quem não é de Belo Horizonte, eu vou devolver”, prometeu ele, em um evento de campanha. E ameaçou os prefeitos que patrocinam essa migração forçada: “O prefeito que insistir, e a gente identificar isso, vamos mandar é cinco de volta”. Viana não foi eleito.

De volta ao Senado, onde preside atualmente a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Viana suavizou o discurso e criticou a prática de exportação de vulneráveis por prefeituras de todo o país. Ele, inclusive, defende que o Senado “assuma o protagonismo dessa discussão, porque é aqui que se define o equilíbrio entre municípios, estados e governo federal”. “Quando uma cidade envia pessoas em situação de rua para outra, não está resolvendo o problema, está apenas mudando o CEP da dor. O Brasil precisa parar de terceirizar responsabilidades e voltar a coordenar políticas públicas com planejamento, e não com improviso”, disse ele ao Correio. (VD)

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