Por Ricardo Daehn via Correio Braziliense
“Uma sereia não tem lágrimas e, portanto, ela sofre muito mais”, esclarece uma frase de Hans Christian Andersen, autor dinamarquês que inspirou o retorno da Disney, no campo das animações, em 1989, oito anos depois do exitoso O cão e a raposa.
Noutra espécie de renascimento, com o impulso do live-action (que remodela animações para personagens de carne e osso), aquele sucesso mundial trouxe o desafio para o cineasta Rob Marshall de modernizar o enredo do começo do século 19 para porções de mares caribenhos, no qual desponta o irrepreensível talento da atriz Halle Bailey, contestada, a princípio, por fãs que idealizavam a transposição mais fiel ao desenho original, que tinha uma protagonista ruiva.
Longe da superfície dos humanos, tomados por “bárbaros”, na visão do pai de Ariel (o rei Tritão, que na tela é vivido pelo espanhol Javier Bardem), a pequena sereia do título vai encarar a jornada da princesa, desafiando limites, se entregando a feitiço e almejando um amor perfeito.
Indicado ao Oscar de melhor diretor, em 2002, com o musical Chicago (vencedor de melhor filme), o cineasta Rob Marshall veio ancorado a um sucesso da Disney com renda estimada em US$ 1,6 bilhão, e na empreitada do comando do live-action teve o apoio de Alan Menken, nada menos do que 19 vezes indicado ao Oscar por suas criações musicais, e ainda o reforço de Lin-Manuel Miranda, talento com quem já contou em O retorno de Mary Poppins (2018). Três adendos tomam parte da trilha sonora do musical — Wild uncharted waters, The Scuttlebutt e For the first time. No resto, desfilam canções consagradas.
A ponte entre os mundos marinhos e terrestre, em A pequena sereia, virá não apenas pela musicalidade: veloz, Ariel, uma das representantes dos sete mares, até escapa das redes dos humanos, mas, ressaltada entre cardumes multicoloridos, não se desvencilha dos supostos encantos do príncipe Eric, papel de Jonah Hauer-King (que carrega o quê de um Patrick Dempsey juvenil). Saída do reino de Atlântida, nesta história, por vezes sombria, Ariel encara uma trama movida a inesperados noivados e ainda a perigosas situações num penhasco.
Destemida e bisbilhoteira, Ariel terá companhias de animais, alguns medrosos e expressivos como o achatado peixe Linguado (Jacob Trembley, sempre associado ao dramático Extraordinário), e outros mais despachados como o caranguejo Sebastião (Daveed Diggs), um bichano de atitudes estudadas, mas bondoso e gentil, e ainda Sabichão (em papel entregue a Awkwafina, que abraça a composição vocal de um ganso-patola, no lugar da gaivota, como fora na animação da Disney).
Com um colorido fortalecido e belo, as aventuras de todos tocam o cotidiano infeliz e solitário de Eric. Ao lado do cachorro Max, ele conta com a tutoria do senhor Grimsby (Art Malik), num reino sob as ordens da rainha Selina (Noma Dumezweni) no qual uma válvula de escape se encontra na biblioteca do palácio. Ausente na celebração da Lua Coral, Ariel não demora a se apresentar como a mais evidente pretendente do noivo, por tudo, abobalhado.
Seguindo a cartilha do roteiro original (da versão animada dos codiretores Ron Clements e John Musker), junto com o colaborador David Magee (de Em busca da Terra do Nunca), Rob Marshall capricha na relevância da malévola personagem Úrsula, que, ainda inofensiva (num primeiro momento), pede perdão até pela agressividade do jardim mantido a sua volta. Lembrada por duas merecidas indicações ao prêmio Oscar, a atriz Melissa McCarthy desponta no longa-metragem com imensurável talento no papel do exilado polvo humanoide. Fundamental para a transformação de Ariel em uma humana, Úrsula, com a potência de uma exemplar bruxa, que, diante de uma poção com três dias de validade, coloca, numa metáfora, Ariel a desvendar as “águas” inexploradas e selvagens, da verdadeira terra firme.
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