

Nova nota doutrinal aprovada por Leão XIV reforça exclusividade conjugal, condena relações múltiplas e reconhece o valor unitivo e afetivo da vida sexual
Por Bianca Lucca - Correio Braziliense
O Vaticano publicou, nesta terça-feira (25/11), uma nota endossada pelo papa Leão XIV que reafirma a doutrina católica sobre o matrimônio e aprofunda a compreensão da sexualidade.
O texto sustenta que o casamento continua sendo compreendido como a união exclusiva entre um homem e uma mulher, mas salienta que a vida sexual dos cônjuges não se restringe à finalidade procriativa.
Sob o título Una caro (“uma só carne”), o documento elaborado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé descreve a monogamia como valor central da vida conjugal e define a sexualidade como uma “maravilhosa dádiva de Deus”, vinculada à capacidade de doação mútua. A nota explica que o ato sexual tem um papel unitivo que vai além da concepção de filhos, fortalecendo o vínculo exclusivo entre os esposos e o sentido de pertencimento recíproco.
O texto reforça que, embora a abertura à vida faça parte da caridade conjugal, isso não implica que cada relação sexual deva ter a intenção explícita de gerar descendência. O casamento mantém sua essência mesmo quando não há filhos, e o respeito pelos períodos naturais de infertilidade é considerado legítimo, segundo o documento.
Ao tratar do prazer sexual, o Vaticano alerta para o risco de esvaziamento afetivo quando a intimidade é vivida apenas como satisfação individual, reduzindo o outro a instrumento para desejos imediatos. A nota diz que Deus criou a sexualidade e que integrá-la em um amor que busca o bem do outro não diminui o prazer, mas o enriquece e o fortalece.
A doutrina reafirma ainda que o matrimônio é uma união única e exclusiva entre um homem e uma mulher, entendida como pertencimento recíproco que não admite compartilhamento com terceiros. Esse ponto conduz à crítica tanto da poligamia — tema levantado por bispos africanos — quanto do poliamor, prática em expansão no Ocidente. De acordo com a nota, poligamia, adultério e poliamor se baseiam na “ilusão” de que a intensidade afetiva possa ser conquistada pela sucessão de parceiros, o que dispersaria a unidade do amor.
Ao mesmo tempo, o texto rejeita qualquer compreensão do matrimônio como posse, condena práticas que violem a liberdade do cônjuge, denunciando formas explícitas e sutis de violência, opressão, coerção psicológica, controle e sufocamento. O documento destaca que o amor conjugal exige respeito à dignidade do outro e nunca busca absorvê-lo ou anulá-lo. Reconhece que a vida a dois inclui espaços de reflexão e momentos de solidão, que podem ser saudáveis desde que não se tornem distanciamentos permanentes. O diálogo sincero, diz o texto, é essencial para preservar o “nós dois”.
A nota enfatiza ainda que a oração é um recurso central para o crescimento espiritual e afetivo dos cônjuges, fortalecendo tanto o vínculo quanto a caridade conjugal — descrita como uma força unitiva, total e fiel, sustentada pela graça e pela vida sacramental. Nesse contexto, a sexualidade é vista como expressão da doação de si, física e espiritual.
O documento dedica-se também aos desafios culturais contemporâneos, apontando que o individualismo consumista e o ambiente das redes sociais — marcados pela exposição do corpo, pela banalização da intimidade e pelo aumento da violência simbólica — tornam urgente uma pedagogia renovada sobre amor, responsabilidade e esperança. Conforme a doutrina, educar para a monogamia não é um retrocesso moral, mas uma introdução à grandeza de um amor que transcende a imediaticidade e abre acesso à experiência do mistério.
Também é valorizado o compromisso social do casal. Ressalta-se que o amor conjugal deve se abrir ao bem comum e não se fechar em dinâmicas individualistas. A atenção aos pobres é definida como “antídoto” à autossuficiência e à endogamia afetiva, lembrando que, para Leão XIV, os pobres fazem parte da vida familiar dos cristãos.
O documento conclui afirmando que o matrimônio autêntico é sempre uma unidade composta por dois, cuja exclusividade fundamenta a indissolubilidade. A fidelidade nasce de uma comunhão livremente escolhida e continuamente renovada, capaz de crescer no tempo como uma “promessa de infinito”.
Além disso, a nota inclui um longo percurso teológico e filosófico sobre a monogamia. Parte do Gênesis — “os dois serão uma só carne” — e dialoga com autores como Santo Agostinho, que descreveu o matrimônio como um caminhar lado a lado. Relembra intervenções papais clássicas, como as de Leão XIII e Pio XI, bem como as contribuições do Concílio Vaticano II sobre a dignidade igual dos cônjuges.
O texto evoca também Paulo VI, que, na Humanae vitae, articulou o sentido unitivo e procriativo do matrimônio; João Paulo II, com sua “hermenêutica do dom”, segundo a qual o ser humano realiza sua vocação ao doar-se; e reflexões de Karol Wojtya como jovem filósofo, especialmente o “princípio personalista”, que rejeita tratar o outro como objeto, como ocorre na poligamia. Wojtya também contestou a visão rigorista segundo a qual o sexo matrimonial teria apenas a finalidade de procriar, afirmando que há uma alegria legítima na união física vivida com dignidade.
Ainda são recuperadas passagens de Deus caritas est, de Bento XVI, que descreve o amor conjugal como uma força que abre a liberdade humana ao horizonte da eternidade, e referências à Amoris laetitia, de Francisco, especialmente no capítulo dedicado à caridade conjugal. De Leão XIV, o documento destaca sua mensagem pelo décimo aniversário da canonização de Louis e Zélie Martin, apresentados como modelo de fidelidade, caridade, perseverança e confiança nas provações.
A nota também dialoga com filósofos como Emmanuel Lévinas, para quem a união exclusiva do matrimônio cria um “face a face” não transferível, e com Jacques Maritain, que define o amor como doação irrevogável voltada ao bem do outro e orientada à união com Deus. O texto encerra com um capítulo dedicado à “palavra poética”, reunindo versos de Whitman, Neruda, Montale, Tagore e Dickinson, utilizados para ilustrar o caráter totalizante e indestrutível do vínculo do “nós dois”. Como resume Santo Agostinho: “Dá-me um coração que ama e compreenderá o que digo”.

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